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Regina Silveira nunca foi uma artista formalista

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A artista plástica e arte-educadora, Regina Silveira, iniciou sua formação em Porto Alegre, tendo se formado no Instituto de Artes da UFRGS em 1959, e estudado pintura e gravura com Iberê Camargo e estabelecido com ele duradoura convivência. Começou a trabalhar como ilustradora e pintora e chegou a fazer xilogravuras com pacientes do Hospital Psiquiátrico de Porto Alegre. Nos anos 70 executou séries de gravuras com malhas e perspectivas como Labirintos, “Labirintos para Abutres” e “Armadilha para Executivos”. Começou a utilizar imagens fotográficas e procedimentos foto-mecânicos nas gravuras das séries Middle Class & Co., “Destruturas Urbanas” e “Jogos de Arte”, e passou a atuar no circuito da mail art. Neste período tornou-se importante artista multimídia e pioneira da vídeo-arte no país. Entre grandes eventos e Bienais, participou das Bienais de São Paulo em 1983 e 1998, na Bienal do Mercosul (2001, 2011), e na VI Bienal de Taipei (2006), além de mostras “Brazil: Body and Soul”, no Guggenheim Museum, New York (2001); “Philagrafika 2010”, na Philadelphia e a “ Mediations Biennale”, Poznan, Polônia (2012). A artista recebeu prêmios da Fundação Bunge Prêmio nas Artes em 2009 e o Grande Prêmio da Crítica, dado ao trabalho Tramazul, executado no MASP (2010/2011) pela APCA (Associação dos Críticos de Arte de São Paulo) em 2011.

Regina, como é ser considerada a mágica das sombras pela crítica especializada?

Uma classificação simpática! É muito confortável ser considerada assim no universo poético das sombras projetadas, com tradição tão longa em todas as artes… Mas, ao mesmo tempo, é uma simplificação bastante limitadora, dado que ao longo do meu percurso, que é marcadamente gráfico, as sombras projetadas sempre conviveram com outros recursos de linguagem, como as distorções de perspectiva, as apropriações de imagens, a fotografia e os padrões formados por vestígios diversos com que venho revestindo tantas arquiteturas nos últimos anos — enfim, acredito que todos têm marcado igualmente o meu trabalho.

A arte deve ter um papel social de alguma forma?

Isto faz parte do que acredito, pois, eu nunca fui uma artista formalista. Se a função do artista é a intermediação mágica com o mundo, a arte tem que dizer sobre o mundo para alguém: para um ou muitos. Além da sua capacidade de transformar as percepções do real, a arte também pode também se revestir de ativismo social e político, já expresso na conhecida e histórica equação arte=vida, que, em seus melhores momentos existem como inserção na vida – contingente ou necessária, estética ou paradoxal – e em seus momentos mais discutíveis como arte rasamente política, factual e partidária.

Em uma certa ocasião, a senhora afirmou que gosta dos artistas e sobretudo dos pintores que trabalham com a consciência da diversidade dos meios de linguagem. Essa consciência é difícil de ser encontrada na atualidade?

Nada difícil, até fácil demais em tempos recentes: a visualidade híbrida é uma característica de muitos jovens pintores, mesmo em início de carreira. Na verdade, isto é quase inevitável, dado o modo avassalador de experimentar imagens na atualidade: na arte a imagem pintada se mistura e se carrega com características digitais – que por sua vez engoliram a fotografia e os demais meios temporais… meios dentro de outros meios… Entretanto, mesmo que este hibridismo consiga dar uma cara nova à pintura anterior, ele por si só não garante a qualidade das ideias e até da própria mistura, se ela continuar sendo só epidérmica… Aquela minha afirmação queria se referir a pintores admirados por uma produção que se dava com alta consciência crítica da história da arte, da pintura, da linguagem e dos meios…

A senhora começou a trabalhar como ilustradora e pintora, fazendo xilogravuras com pacientes do Hospital Psiquiátrico de Porto Alegre. Como foi essa experiência?

Juntar tudo isto vai resultar em uma resposta longa e mesmo assim insuficiente, pois cobre bastantes anos de minha atividade em Porto Alegre nos anos 60… Antes de vir morar em SP em 1973, depois de viver períodos na Espanha (1967 e 1968) e Porto Rico (1969 a 1973), fui jovem pintora com trajetória de exposições individuais, tanto nas poucas galerias brasileiras daqueles anos, como em instituições e museus que incluíram por duas vezes o Museu de Arte do Rio Grande do Sul, chegando a ganhar diversos prêmios nacionais em salões pelo Brasil. Fazia uma carreira de pintora, em franco andamento depois de estudos no Instituto de Artes do Rio Grande do Sul e durante os anos em que convivia mais com o mestre Iberê Camargo – durante e depois de seus cursos em Porto Alegre.

Depôs das muitas transformações de minhas convicções como artista e da inclusão de novos modos de operar, nos anos subsequentes, quando me fixei em SP em 73, já era uma artista multimídia.

De fato, no início dos 60 deixei as funções docentes – depois retomadas – que já tinha no Instituto de Artes do Rio Grande do Sul logo depois de formada, para trabalhar por dois anos – diariamente – nas praxiterapias do Hospital Psiquiátrico São Pedro Pedro, que ajudei a organizar. Mas lá eu não fiz xilogravuras com os pacientes – eles mais desenhavam e pintavam – e sim eu mesma tive uma produção de xilogravuras, com temas derivados desta experiência de arte e terapia, que foi um aprendizado forte para mim, com dimensões existenciais.

Também durante todo este período e até 1966 fiz semanalmente ilustrações para as poesias publicadas na coluna Bric – a – Brac da Vida no tradicional diário gaúcho Correio do Povo onde igualmente ilustrava, muitas vezes, a coluna dominical da poetisa Lara de Lemos. Esta foi uma atividade light e bem prazerosa, que ainda traz boas lembranças de quando ia à redação entregar os desenhos e recolher outros poemas e ali sempre encontrava o poeta Mario Quintana, para uma boa conversa…

O que um artista multimídia deve ter em mente, para que quando sua arte for vista, não dê uma sensação de déjà vu para o espectador?

Esta é uma falsa questão: não há porque pensar em déjà vu tratando-se apenas de meios! Eles devem vir a reboque das ideias e da linguagem – o pior é quando as ideias e seus resultados são de segunda linha e pisam no molhado!

Os meios, e especialmente os derivados de novas tecnologias podem de fato caducar em pouco tempo – mas, mesmo que caducassem a cada semana isto não é mais que um problema de preservação ou de transcrição de meios – ao qual há muito já estão atentos museus, arquivos e instituições várias, para preservar a história deste tipo de manifestação. Este não é um real problema da arte, em qualquer tempo. Se a arte é boa, mesmo que aquilo que ela quis dizer adquira diferentes significados com os anos, ela continua imantada indefinidamente e influindo no futuro – se não, é até bom que desapareça! E isso não se restringe só à multimídia…

Muitos dizem que a senhora é uma transgressora. Qual foi a maior transgressão que se orgulha de ter cometido com a sua arte?

Gosto da expressão cutucar a onça com vara curta porque prescreve uma atitude que é bastante implacável e que entendo se precisa renovar a cada dia… Implica não facilitar coisa alguma, não se acomodar em limites confortáveis – e aceitar e até mesmo criar desafios para si mesma, tanto melhor quanto maiores… Se cheguei a ser transgressiva acho ótimo, isto deve provir da minha curiosidade continuada e do meu gosto pelo risco.

Mas eu mesma não sei dizer que tipo de transgressão, grande ou pequena, foi mais importante ou interessante no meu percurso – possivelmente as melhores foram as que me indicaram novas direções. Tanto gostei de projetar anonimamente imagens inesperadas em circuitos urbanos como foi a do Super. Herói e a mosca de Transit, no Brasil e o ideograma de NOOR (luz) em mercados públicos noturnos em Lahore, no Paquistão, quanto continuo ligada, muitos anos depois, em projetos ainda não realizados no Brasil ou fora – talvez só porque sejam difíceis de negociar e termino gostando desta queda de braço… Também posso persistir porque são inusitados, como foi o da arquibancada do Pacaembu – e implicam colocar a arte fora de seus espaços protegidos, o que é sempre desafiante. Mas já não sei se estou falando de transgressão ou teimosia: transgressão será compatível com persistência?

Em sua visão, como fazer para que educação e arte andem juntas em nosso país?

Aqui minha resposta é quase otimista… Depois de algumas contribuições fundamentais nos anos 50-70, uma relação mais apertada da arte com a educação já aparece com clareza no Brasil depois dos anos 80, com o protagonismo de alguns museus que se abriram mais a uma construção bem planejada de atividades educativas e de intermediação com o público. De lá para cá isto tem se expandido razoavelmente, em irradiação maior ou menor, conforme a área do país.

Esta melhora tem a ver também com o ensino da arte no país, que desde os anos 70 formou artistas com maior comprometimento com a educação, partindo uma atitude que chegou a orientar o encaminhamento de suas próprias carreiras. Além disto, fora dos canais institucionais, a própria sociedade civil tem se organizado de modo apreciável para iniciativas muito valiosas que promovem arte nas escolas, multiplicando atividades e publicações para crianças e adolescentes.

Enfim, o Brasil não vai mal na construção deste vínculo entre arte e educação – isto sem negar que isto tudo se refere apenas às áreas mais desenvolvidas do país… Para tudo o mais que falta fazer no Brasil ainda será preciso arregaçar as mangas e ter a coragem de fazer muitas cruzadas…

A senhora é considerada um dos nomes fundamentais da arte contemporânea do Brasil. Quando esta arte deve tocar as fronteiras de áreas mais utilitárias como a comunicação, por exemplo?

Creio que há muito tempo as fronteiras das artes visuais com as outras artes e as demais áreas do conhecimento estão bastante difusas e também persiste, de muitas maneiras, a relação com a comunicação, que foi uma verdadeira pauta da arte nos anos 70. Mas preciso dizer que apesar das afinidades e da possível impregnação pelo uso compartilhado dos mesmos meios, entre arte e comunicação há muitas diferenças que é preciso salvar, a começar pelas que são de raiz: as diferenças de função…

A presente transversalidade no campo das artes para mim, é mais viva e interessante do que a relação entre o par arte/comunicação, pelos modos como a conversa entre campos e autores pode fertilizar a imaginação, invadir espaços menos ritualizados e atingir outros públicos. Meu próprio trabalho inclui parcerias com a moda, que começaram uma década atrás com uma coleção de roupas, feitas por Andrea Velloso, com imagens da série Armarinhos, e em anos mais recentes se expandiram na parceria que fiz com Raquel Davidowicz, da UMA, para uma coleção de inverno marcada pelas Derrapagens. Também minha participação no evento Arte e Gastronomia, no MAM-SP (2012) foi bem instigante pela oportunidade e o desafio de realizar e projetar em cenário de cozinha montada no museu, uma animação digital de sombras em tecnicolor que fiz em colaboração com o Arquiteto Claudio Bueno. Em espécie de paródia de show business o vídeo em loop foi um tipo de teatro de sombras em que desfilavam silhuetas de talheres, formigas e camarões, entre outras sequências raras, para interagir com as ações do chef Murakami. Minha parceria mais recente foi com a artista e designer Renata Meirelles, para explorar ainda uma vez as Derrapagens, agora como motivos gráficos que podiam usar o corpo como suporte, na coleção de joias têxteis que chamamos de Roller Series.

Tive sempre a maior abertura e interesse por migrações de território: trazem boas trocas e ventilação para o repertório…

Qual o paralelo que a senhora faz da cena conceitual da década 70 e dos dias atuais?

Nos anos 70 a cena conceitual foi parte viva do cotidiano de artistas da minha geração – e impregnava todas as relações pessoais e profissionais: isto incluía tanto a prática artística como a atividade docente. Tanto a formação tradicional foi posta em cheque pelos artistas conceituais alinhados com o ensino – por vontade, crença ou necessidade – que o próprio mobiliário dos estúdios, sem cavaletes de pintura, mostrava o rechaço dos meios ligados ao passado ensino acadêmico. Na cena dos anos 70, os artistas gerenciavam suas próprias carreiras e produções, se organizavam em grupos para manifestações e eventos e não havia intermediação de curadores e galerias. Ninguém vendia coisa alguma, o melhor regime de trânsito de obras era a troca – todos fazíamos trabalhos paralelos para sobreviver e para manter a produção, mesmo assim conseguíamos nos comunicar, viajar com algum risco e nos organizarmos internacionalmente para publicações e exposições radicais que fizeram época… Era uma cena seca, essencial, às vezes bem dura – sinceramente, não vejo como e, porque comparar este contexto dos 70 com a cena contemporânea, depois de tantas décadas de mudanças sociais, artísticas, científicas, ideológicas e mais — o mundo já é outro, e também a arte é outra, para o bem ou para o mal… Ter o olho na arte conceitual dos anos 70 é necessário e natural se estamos falando de uma história que pode informar novas gerações – mas paro por aí… Será que éramos felizes e não sabíamos?

Poderia falar alguma coisa sobre sua exposição na Galeria Luciana Brito em São Paulo?

Na exposição Tramados que abriu no dia 11 de junho último, mostro obras que tratam de responder ao presente vínculo forte que a nova galeria mantém com o espaço arquitetônico que agora ocupa, de alta qualidade e preservado historicamente. Uma queda de braço para os artistas? Sem dúvida, mas também um desafio estimulante! Dentro da casa ocupei basicamente uma das salas e um corredor e fora, o pavilhão anexo, construído recentemente no jardim atrás da casa. Para os dois espaços pensei em dois patamares do meu percurso – dentro da casa coloquei aquele referido a um tipo de produção já fechada no tempo: um conjunto de desenhos preparatórios desenvolvidos com recursos geométricos e perspectivas diversas, quase sempre sobre papel milímetro. Entre as centenas de desenhos que conservo em meus gaveteiros, escolhi entre aqueles feitos em função de planejar recortes pintados e tapeçarias, com o tema do mobiliário doméstico, todos realizados no início dos anos 80 até meados dos 90.

Já para o anexo no jardim, escolhi montar uma pequena genealogia das obras com imagens simulando bordados em ponto de cruz, com motivos de céus e nuvens, de modo a criar contexto para a criação, mas nova e inédita, que é um piso cerâmico de grande formato, mostrado por fragmentos realizados em técnicas de sobrevidrado. O piso remete diretamente a Dreaming of Blue, a pintura com cerca de 200m2 , executada em tinta epoxi por stencils, que agora recobre, em caráter permanente, a fachada de um ginásio, na pequena ilha de Ogijima, no sul do Japão, para 2ª Trienal de Setouchi, que abriu em março deste ano. Todo o discurso visual montado nesta parte da galeria começa com a maquete de Tramazul, a intervenção que realizei nos vidros do MASP em 2010 e atende minha intenção de mostrar um projeto com potencialidade de se integrar com arquiteturas diversas. Penso que é a parte da exposição Tramados que me situa no presente e aponta para o futuro.

Foi difícil encontrar esta poética própria que permeia os seus trabalhos de uma forma única?

A poética de um artista não se encontra, nem cai do céu como flash inspirador – ela tem que ser construída diariamente, também em fins de semana e feriados – é tarefa difícil e disciplinada, mesmo que agregue componentes mágicos e imaginativos! Gosto de pensar na poética do artista como um tipo de poço que ele mesmo cavou, permanece cavando e que não tem fim – ao longo da vida fica retirando tudo do mesmo poço – até o que precisa ser re-imaginado! Mesmo as mudanças que invariavelmente acontecem nas trajetórias – longas ou curtas – começam nele, e serão revitalizadoras se ele tiver a capacidade de criar relações com o que lhe saiu deste poço. Neste contexto, as poéticas são próprias ou originais quando o poeta cava o poço em espaço pouco balizado, ou terreno mais agreste…

Última atualização da matéria foi há 2 anos


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